Teorias do Cinema em audiovisual

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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O dispositivo dissipado Entre-imagens[8]

Quanto à perspectiva, à fotografia e ao cinema estarem “marcados pela ideologia humanista e pela ideologia burguesa, que dela deriva” (AUMONT, 1995, p. 217), Aumont argumenta que “não houve uma ideologia burguesa do século XV ao século XX, mas diversas formações ideológicas sucessivas que foram suas manifestações” (1995, p. 217). Algumas releituras e críticas do desconstrucionismo, dentre elas a de Jacques Aumont, apontam para o fato de que diversos valores simbólicos da perspectiva se sucedem ao longo da história e não devem ser achatados em um movimento restritivo e pouco rigoroso, como o operado pela crítica desconstrucionista. Neste ponto de sua releitura do desconstrucionismo, Aumont evoca Hubert Damisch, para quem “o humanismo (toscano ou outro) não podia contentar-se com a perspectiva dita central, assim como não podia contentar-se com a definição pontual de sujeito [...] que é seu corolário” (AUMONT, 1995, p. 217).
Aumont também opera um deslocamento da questão da ideologia para o simbólico. Apesar de todas estas restrições, não se pode perder de vista o fato de que o desconstrucionismo legou aos campos do conhecimento que tratam da imagem “[...] a idéia fundamental de um dispositivo que relaciona a imagem com seu modo de produção e com seu modo de consumo e, portanto, a idéia de que a técnica de produção das imagens repercute necessariamente na apropriação dessas imagens pelo espectador.” (AUMONT, 1995, p. 181-2).
Conforme já referido (Capítulo I, tópico 1.1.1), o conceito de dispositivo figura em Aumont (1995) como sendo o que regula a relação entre o espectador e a imagem dentro de determinado contexto simbólico. A partir desta definição simples, Aumont afirma que todo o aparato do dispositivo terá “necessariamente efeito sobre esse espectador como indivíduo” (AUMONT, 1995, p. 188). O dispositivo tem, desta forma, os seus efeitos subjetivos; estende-se à esfera do subjetivo.
Considerando esta natureza subjetiva dos dispositivos, Aumont aponta então para a instância simbólica dos mesmos. Atingindo a esfera do simbólico, os dispositivos alcançam a esfera do social:
Dizíamos ao começar: o dispositivo é o que regula a relação entre o espectador e suas imagens em determinado contexto simbólico. Ora, ao final desse apanhado dos estudos relativos aos dispositivos de imagens, o contexto simbólico revela-se também necessariamente social, já que nem os símbolos nem a esfera do simbólico em geral existem no abstrato, mas são determinados pelos caracteres materiais das formações sociais que os engendram. (Aumont. 1995, p. 192).
Dentro de sua abordagem, Aumont entende os dispositivos como tendo a propriedade de articular os campos da técnica e da estética ao do simbólico. Este por sua vez é determinado por caracteres materiais de ordem social. Os aspectos simbólicos dos dispositivos têm origem justamente nestes caracteres de ordem social que se formam a partir dos contextos culturais, nos quais acontece o processo ao longo do qual se constituem.
As teorias da imagem, até fins dos anos oitenta, estiveram sempre muito ocupadas em apontar uma “especificidade” dos dispositivos abordados. Para os desconstrucionistas, a especificidade da fotografia e do cinema estava na presença da ideologia burguesa nos próprios dispositivos. Para Philippe Dubois e Jean-Marie Schaeffer, no início dos anos oitenta, o específico do dispositivo fotográfico é sua natureza de traço, de índice[9]. A releitura que Aumont faz das teorias dos dispositivos, no início dos anos noventa, nos permite ver o dispositivo dissociado de uma especificidade.
Os dispositivos vão deixando de ser encarados como portadores de essências. Com o deslocamento que sofrem na abordagem de Aumont, perdem a sua antiga especificidade, a ideologia. O simbólico não é uma especificidade dos dispositivos de imagem, como era a ideologia nas teses desconstrucionistas. O conceito de dispositivo não deixa de existir no contexto teórico contemporâneo, mas ele subsiste com graus de fixidez menores, entre suas partes, com limites não estanques entre um dispositivo e outro.
A partir de meados dos anos oitenta, uma nova tendência foi se configurando no cenário da teoria da imagem e do audiovisual, fundindo estudos teóricos com apreciações críticas de obras. Os estudos do “entre-imagens” são realizados por pensadores da imagem e das artes, como Philippe Dubois, Raimond Bellour e Jacques Aumont, e tratam das intersecções, dos cruzamentos dos dispositivos.
O interesse no estudo dos dispositivos não se concentra mais na busca de suas especificidades, mas nas novas perspectivas que se abrem quando um dispositivo é olhado pelo prisma de outro dispositivo, pelo viés de outro dispositivo.
Após meus primeiros trabalhos do início dos anos 80 sobre fotografia, depois deles, mais recentes, sobre vídeo, que, cada um à sua maneira, tentavam aproximar um modo de imagem tecnológico daquilo que havia esteticamente de mais essencial (sua “especificidade”), considero, hoje, que quase não é mais possível, na paisagem (audiovisual e teórica) que é a nossa, falar de uma arte em si e por si só, como se ela representasse um domínio autônomo, isolado, autárquico. No plano teórico, creio que não existe mais utilidade nem mesmo pertinência, em tratar a fotografia em si, ou o cinema como ontologia, ou o vídeo enquanto suporte específico. Ao contrário, penso que (e já comecei, aqui e acolá, a tratar, nessa perspectiva, as relações transversais existentes entre cinema, foto e vídeo), de fato, nunca se sente melhor posicionado para tratar, afinal, de uma forma de imagem dada a não ser encarando-a a partir de uma outra, através de uma outra, dentro de uma outra, pelo viés de uma outra, como uma outra. (DUBOIS, P., 1994).
Ao invés de uma abordagem frontal, busca-se chegar à fotografia, ao cinema, ao vídeo ou à imagem virtual pela dobra, no sentido que Deleuze deu a este termo (DUBOIS, P., 1994). As passagens de um dispositivo para o outro têm sido apontadas pelos teóricos do “entre-imagens” como operações que, dentre outras coisas, possibilitam o surgimento de aparelhos fílmicos. Esses, por sua vez, são distintos dos "aparelhos de base" ou dos dispositivos de Baudry e Metz: "O próprio filme, no intervalo entre sua massa física e a espessura psíquica de seu transcorrer, torna-se o aparelho." (BELLOUR, 1997, p. 29-30). Um pouco antes Bellour comenta esta diferença em outra modulação: Thierry Kuntzel, o artista em questão, é também teórico. No ensaio Thierry Kuntzel e o retorno da escrita, Bellour comenta a dificuldade que o cinema sempre enfrentou para pensar a si mesmo, não para se representar:
Quando digo 'pensar-se', entendo a parada e o retorno sobre si mesmo que, num determinado momento, prescrevem o deslocamento e a redefinição da compreensão da arte: na literatura, por exemplo, Mallarmé, Blanchot, Barthes. O cinema, que não é desprovido nem de representações nem de palavras, como a música, nem de temporalidade discursiva, como a pintura, vive na tentação e na obsessão de poder pensar-se. Para tanto, existem duas possibilidades: a exterioridade da escritura e um trabalho sobre o transcorrer da imagem, que garante a sua ilusão. Eisenstein, Vertov. A maneira como misturam as duas explica sua posição privilegiada na história do cinema e em sua teoria. [...] Talvez fique claro um dia que a transição do cinema para o vídeo é comparável ao que foi em poesia a passagem do verso alexandrino para o verso livre, e que uma reflexão sobre o destino literário da língua surgiu dessa passagem, como hoje em dia a reflexão sobre o destino da imagem. O admirável deslocamento operado no sentido da ficção pelo último filme de Godard − Salve-se quem puder (a vida) − é mais do que um signo disso. O cinema é realmente a "verdade 24 vezes por segundo". Mas desde que se possa decompô-la, fazê-la voltar sobre si mesma e desnaturalizá-la para reinventá-la. É o que faz o trabalho da teoria, em sua exterioridade de princípio, o que o cinema tenta fazer e o que o vídeo lhe ajuda a perfazer. O procedimento de Thierry Kuntzel ilustra isso de modo particularmente preciso. (BELLOUR, 1997, p. 28).
Bellour comenta como os textos teóricos de Kuntzel são distintos dos de Baudry ou Metz. Eles não visam "cinema propriamente dito" (1997, p. 28), um dispositivo genérico, e também não são análises de filmes. Os textos de Kuntzel fazem "com que surja sempre 'o outro filme' que o filme esconde" (1997, p. 28). Não é o caso de tornar uma estrutura visível, alguma "lógica exemplar de funcionamento" (1997, p. 28): "O que está em jogo, além, mas no objeto, é um efeito-sujeito, uma cena psíquica a ser especificada." (1997, p. 28).
A imagem congelada no cinema, uma espécie de retorno do cinematográfico ao fotográfico, o "fotogramático" de Bellour, é um dos recursos-chave deste tipo de procedimento acima indicado. Kuntzel se congela os primeiros 27 planos de M., O vampiro de Dusserdolf[10]. Ele nos diz:
O "trabalho do filme" é compreendido em relação ao "trabalho do sonho", cujas operações reconduzem para o filme − a questão dirigida ao cinema pelo filme. Posição teórica, que envolve um certo saber, mas principalmente um deslocamento: "A leitura de um começo de filme é o 'filme' de um começo de leitura".[11] O congelamento, a câmera lenta, a tradução em palavras, entre ver e saber, fazem com que se descortine um "outro filme".

A proposta teórica de Bellour, sua postura em relação aos dispositivos de imagem (bem como às posições assumidas por Jacques Aumont e Philippe Dubois) entram em forte consonância com a disposição de Didi-Huberman de não enfrentar o objeto frontalmente, de considerar sua natureza multifacetada de cristal e de buscar sempre um “entre” no percurso do trabalho crítico. A abordagem não frontal da arte por Krauss, desempenhada “a partir” da fotografia, em uma teoria dos distanciamentos, também tem significativas convergências com as posições teóricas da tendência do “entre-imagens”. No capítulo seguinte, em 3.5, o pensamento de Krauss “a partir” da fotografia será visto mais de perto, enquanto a postura de Didi-Huberman, por sua vez, será tratada à partir de 4.2. (Este excerto foi extraído de minha dissertação de mestrado, Fotografia e cubos: o fotográfico e o minimalismo, defendida no Programa de Pós Graduação do Instituto de Artes da UnB em 22 de Dezembro de 2006.

[1] A revista Cinéthique era ligada à conhecida Tel Quel. (Cinéthique, n◦ 1 a 13/14 – 1969/1972. apud XAVIER, p. 110).
[2] Os autores desta tradição não distinguiam a perspectiva naturalis da artificialis e falavam de "perspectiva monocular", "perspectiva central" ou, simplesmente, "perspectiva".
[3] "Il s'agit de savoir, pour ces films comme pour ces livres et revues, s'ils se content d'être traversés tels quels par cette idéologie, d'en être le lieu de passage, la médiation transparente, le language élu, ou bien s'ils tentent d'opérer um retour et une reflexion, d'intervenir sur elle, de la rendre visible en en rendant visibles les mécanismes: en les bloquant[3]." (COMOLLI; NARBONI, 1969, p. 11-15).
[4] Estes argumentos de Baudry são parcialmente antecipados no tópico 3 deste mesmo capítulo, p. 53-55.
[5] A noção de “aparelhos de base” dará lugar, mais tarde, em 1975, ao conceito de dispositivo de imagem.
[6] O dispositivo (Le dispositif). Communications n° 23, 1975).
[7] Decupagem é o processo de decomposição do filme em seqüências e cenas, e destas em planos. A decupagem clássica procede de forma a esconder os saltos provocados pelos cortes, dando assim uma ilusão de continuidade espaço-temporal.
[8] Título do livro de Raimond Bellour (BELLOUR, 1997).
[9] Na semiótica de Peirce, o índice é o signo que representa seu objeto por ter sido afetado de fato por este objeto.
[10] Nota de número 1 do ensaio de Bellour: "'Le travail du film', Communications, 19, 1972." (1997, p. 28).
[11] Nota de número 2 do ensaio de Bellour: "Id., p. 25." (1997, p. 28).

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